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Ensaio

À Margem da Obra, Sua Indispensável Documentação

Por Alexandre Ramos Vasques

Minha dissertação de mestrado, “Nos rastros de Limite: Um estudo de caso na história da preservação das imagens em movimento no Brasil” [1], pretendeu abordar alguns aspectos da preservação de filmes no Brasil, com foco na história da preservação de Limite (Mário Peixoto, 1931).

Com o objetivo de apresentar um estudo de parte dos materiais fílmicos de Limite, buscamos esboçar um mapa cronológico das intervenções e manipulações sofridas pela obra, utilizando as marcas, ou seja, os rastros deixados impressos em materiais negativos e positivos de Limite aos quais tivemos acesso, depositados na Cinemateca Brasileira e na Cinemateca do MAM.

Diante da volumosa bibliografia sobre Limite, na qual se destacam os livros e artigos escritos por Saulo Pereira de Mello [2], procuramos abordar o filme de Mário Peixoto sob uma ótica diferente. Buscamos combinar o conhecimento baseado na história do cinema silencioso no Brasil e o seu desenvolvimento tecnológico aos conceitos e termos técnicos do campo da preservação das imagens em movimento.

A pesquisa, dividida academicamente em quatro capítulos, apresenta em suas segunda e terceira partes um vasto e diversificado repertório documental sobre o filme. Neste breve texto, vamos nos deter em alguns pontos do segundo capítulo de nosso trabalho – “Limite: Da produção às primeiras exibições” – que procura, primeiramente, resgatar o contexto cinematográfico brasileiro dos anos 1920/30 que serviu de pano de fundo para a produção de Limite, em 1930. A emulsão pancromática escolhida por Mário Peixoto, a utilização de quatro câmeras diferentes pelo fotógrafo Edgar Brasil, a montagem e o ritmo das imagens são informações preciosas para se compreender a criação da obra.

Estendemos este segundo capítulo às primeiras exibições da cópia em nitrato de Limite. Nesta parte, procuramos demonstrar de que forma o caráter especial – não comercial – destas sessões contribuiu, de um lado, para a preservação do filme, e, de outro, para a mitificação da obra. Para compreender o impacto das raras exibições de Limite no meio cultural brasileiro, consultamos um grande número de periódicos entre os anos de 1930 e 1960.

Sobre a produção e a exibição de Limite, há dois textos publicados no CD-ROM Estudos sobre Limite, produzido pelo Laboratório de Investigação Audiovisual da Universidade Federal Fluminense, em 1998, que são de grande importância para o desenvolvimento da pesquisa, notadamente de seu segundo capítulo. Saulo Pereira de Mello, com seu texto “Sobre a produção de Limite”; e Lécio Augusto Ramos, com seu trabalho “Limite e sua trilha musical”; fornecem aspectos técnicos sobre a produção e a projeção do filme.

Em seu texto, Saulo nos informa, por exemplo, que a câmera Mitchell foi “usada na cena da escada [com a Mulher nº 2 e seu marido pianista em cena]”. Ainda segundo Saulo, “nas filmagens de interior, Edgar usou habilmente o destelhamento como no caso do shot de Brutus Pedreira no alto da escada”. A informação técnica a respeito da captura de imagens de uma sequência do filme cabe no segmento relacionado às câmeras utilizadas em Limite. Em nossa pesquisa, identificamos o uso de quatro câmeras distintas por Edgar. A câmera Ernemann, que viria a ser uma das principais utilizadas em Limite. A câmera Mitchell, emprestada por Adhemar Gonzaga a Mário Peixoto, para que este realizasse alguns planos de Limite na Cinédia. À prestações, Mário adquire a Kynamo de mão, utilizada por Edgar nos planos mais ousados e arriscados, como na sequência das rodas do trem. E da atriz Carmen Santos, que atua em Limite, Mário toma por empréstimo a Debrie Parvo L.

Além da questão das velocidades de filmagem e de projeção, o estudo das câmeras pode nos fornecer informações sobre os recursos técnicos de cada máquina levando-se em consideração o filme sensível e o conjunto de acessórios (objetivas, filtros) disponíveis para o fotógrafo no set.

Por sua vez, o estudo meticuloso do acompanhamento sonoro de Limite, realizado pelo pesquisador Lécio Augusto Ramos, ajuda a reforçar a hipótese de que Mário Peixoto havia criado à posteriori quatro sequências [3], que nunca foram filmadas por Edgar Brasil. Lécio afirma que “em relação às imagens e à sua montagem, a trilha de Limite é bem rigorosa: as fusões na trilha de imagem se repetem na trilha sonora e também certos ritmos de montagem se associam a mudanças de ritmo musical”. Além disso, segundo Lécio, a compilação musical de Limite vinha com uma nota de Brutus Pedreira, que recomendava: “se o último disco de qualquer das oito partes do filme terminar antes das indicações, recomece a tocá-lo até a mencionada indicação. Os discos iniciais devem começar na respectiva indicação, seja qual for o ponto em que esteja o disco precedente”.

A primeira projeção da cópia montada de Limite ocorreu no Cinema Capitólio, em 17 de maio de 1931, com a execução de discos convencionais a 78 rotações por minuto. Portanto, se o desenho de som foi construído em concordância com as imagens, era bastante provável que o andamento visual da cópia “inacabada” não combinasse com a trilha sonora, fato que é ausente nos documentos que consultamos. Indo ao encontro da pesquisa de Lécio, o texto de Saulo nos fornece a mesma informação sobre o aspecto técnico da reprodução sonora de Limite, em sua primeira projeção.

Conhecer e identificar, em cada sequência de Limite, as câmeras utilizadas por Edgar Brasil, e ter acesso ao mapa de execução da trilha musical escolhida por Brutus Pedreira e Mário Peixoto, fazem parte de uma estratégia de trabalho que busca unir os elos produção/exibição/preservação. Objetivamente, associamos a imagem filmada pelas quatro câmeras de Limite às músicas sincronizadas, montadas às imagens durante sua execução, amalgamando definitivamente a velocidade de captação de imagens de cada uma das câmeras à velocidade de projeção das imagens e som da obra. Entendendo conceitualmente como a difusão de uma obra audiovisual impacta sobre a preservação da mesma, compreendemos a importância da coleta e do registro desse tipo de informação técnica documentada.

Ao finalizarmos nossa pesquisa a respeito dos rastros da produção, suas escolhas técnicas, das manipulações ainda realizadas por Edgar Brasil [4], duplicando trechos em avançado estágio de deterioração, e dos processos que envolveram a restauração física de Limite, empreendida por Saulo e Plínio, percebemos o caráter introdutório de nossa empreitada. Os tipos de ocorrências identificadas e suas frequências ao longo da análise dos rolos dos materiais positivos e negativos em mesa enroladeira apresentam uma complexidade que merece ser aprofundada.

O encontro de indícios dos primeiros materiais sensíveis que formaram as imagens de Limite representa, sob nosso ponto de vista, uma contribuição à história do cinema silencioso brasileiro, pois, para além de problematizar algumas questões relativas aos materiais fílmicos de Limite, nosso estudo pode apontar alguns caminhos a serem explorados pelos próximos pesquisadores.

Do ponto de vista metodológico, nossa pesquisa prova o tamanho da relevância do trabalho de documentação sobre um filme. A coleta dos documentos, sua catalogação, e sua conservação, dando acesso à informação ao público interessado é um trabalho fundamental desenvolvido nas cinematecas e nos arquivos de filmes. Ao compilar uma quantidade considerável de trabalhos e pesquisas sobre Limite, a atualização do CD-ROM Estudos sobre Limite, com a transferência de seu conteúdo para um sítio, se insere no inestimável “mapa do tesouro” documental que faz brilhar os olhos de qualquer pesquisador interessado em Limite ou na História do Cinema Brasileiro.

[ 1 ] Dissertação de Mestrado defendida pelo autor em Setembro de 2012 no Programa de Pós-Graduação em Imagem e Som, linha de pesquisa História e Políticas do Audiovisual, da Universidade Federal de São Carlos. Disponível aqui.

[ 2 ] Saulo Pereira de Mello (1933-2020) – Decano da preservação audiovisual brasileira, restaurador, ensaísta, pesquisador, pensador e documentalista. Sua dedicação à preservação da obra de Mário Peixoto é tão intensa a partir dos anos 1950 que sua trajetória pessoal se confunde com a saga que sempre representou defender Limite do desaparecimento.

[ 3 ] Carta de Mário Peixoto de 01 mar. 1980. Documento depositado na Hemeroteca da Cinemateca Brasileira. Quatro partes inéditas descritas por Mário Peixoto em carta de 1980 para justificar a exibição de Limite inacabado em 1931. Saulo, em entrevista concedida ao autor, lembra do desejo quase obsessivo de Mário de retornar às suas obras (audiovisuais e literárias), dando a elas o status de inacabadas.

[ 4 ] Até o ano de sua morte, em 1954.

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