Escolha uma Página

Ensaio

Uma Abordagem Discursiva de Limite

Por Tania C. Clemente de Souza

A primeira vez em que vi Limite, de Mário Peixoto, ainda não tinha lido nada a respeito do filme. Três aspectos básicos me surpreenderam no filme: a beleza da fotografia; a noção de tempo, trabalhada em duas dimensões: o cronológico e o psicológico e a narrativa, conduzida por essas duas dimensões do tempo.

O tempo cronológico é breve: se resume ao espaço de tempo passado no barco, associado ao momento da tempestade, desfecho da trama. O tempo interior, psicológico, é intenso e confuso: traz à memória dos personagens fatos passados de sua vida, entremeados de instantes do momento presente, a situação no barco. A densidade do tempo psicológico faz alongar o curto tempo cronológico e, com isso, tece a narrativa em seu todo.

A narrativa, por sua vez, costurada por essas duas dimensões do tempo, faz com que esta, além de não apresentar uma estrutura linear, projete a história em duas direções.

No passado, conduzida pela memória dos personagens que recuperam algo de um tempo já vivido. E, agarrados ao tempo psicológico, resistem, retardam – mesmo que psicologicamente – o seu fim e, por instantes, se esquecem do tempo real que lhes resta.

No presente, conduzida pela realidade inexorável: o naufrágio e a certeza da morte. O tempo real é curto, é quase nada. Não há futuro, não há mais vida para a frente: só resta àquelas três pessoas re-viver o passado. O passado é o lugar da resistência, da busca do que um dia foi vida.

Enquanto o presente é perene, o passado é longo. E longo e agonizante é o ritmo da narrativa. A intensidade do tempo psicológico prolonga a agonia dos náufragos e incomoda o espectador. Entretanto, fazer durar a agonia é fazer durar a única forma de vida que resta.

O paradoxo instituído por esses dois caminhos do tempo me fez ver Limite, em termos discursivos, como uma grande antítese: vida versus morte. E a análise que eu realizo, fugindo às análises recorrentes propostas para o filme, procura recuperar o conflito dos personagens, traduzido entre ignorar a morte e lembrar a vida. Assim, no meu ponto de vista, o discurso de Limite é, menos que um discurso sobre a decadência do ser humano, sobre a inutilidade da luta diante de um fim inevitável, mas um discurso sobre a capacidade de resistência, de luta pela vida, mesmo quando se está frente a algo invencível: a natureza.

Com fins à sistematização dessa análise, recorrerei a pressupostos encontrados na Análise do Discurso (escola francesa), trabalhando, em especial, com as seguintes noções: o operador discursivo que, por se tratar de um filme, corresponde a elementos de imagem que conduzem a estrutura discursivo-visual do filme; o implícito, imagens não reveladas mas que são sugeridas, podendo as mesmas serem inferidas pela condução do tecido visual do filme e o silêncio, imagens propriamente silenciadas, que deixam em aberto a leitura, a interpretação do filme. Além desses conceitos, trabalharei com a associação de duas figuras de linguagem: a antítese e a metáfora.

 

A abordagem

O ponto de partida é, desde já, revelar a nossa leitura do filme, reafirmando que Limite não é só um texto sobre a limitação da condição humana. O filme não diz só do desespero e angústia diante da tragédia. É também um texto sobre a resistência, a capacidade de luta, a garra pela vida, mesmo quando a morte é iminente e inevitável. O traço mais marcante dessa resistência é a memória que vive o passado, mesmo que ele se constitua de fracassos, infelicidade: assim parece ter sido a vida daqueles personagens. Outros traços – no caso, entendidos como operadores discursivos – costuram o fio da vida: o sangue vivo que escorre do dedo da mulher ao abrir a lata; os biscoitos dentro da lata; a busca do barril de água; a imagem da última mulher que se agarra a uma tábua, o cesto com peixes mortos: da morte do peixe depende a vida do homem; os cabelos revoltos dos personagens, que tanto anunciam o incômodo causado pelo vento, como anunciam a revolta dos personagens naquela situação.

Pela perspectiva do discurso, abandona-se uma análise conteudista – que aprisiona a linguagem (palavras ou imagens) numa única leitura possível, imprimindo ao texto um caráter literal – em prol de uma análise que busca entender o discurso como efeito de sentidos entre interlocutores.

Como tanto os discursos quanto os interlocutores são históricos, esse efeito de sentidos não pode ser único, nem estanque. Varia segundo a história de cada sujeito-intérprete. Assim, é da posição de analista de discurso que leio Limite. Ratificando, porém, que ela não é a única leitura possível, nem tampouco a mais correta do filme. É apenas mais uma interpretação dentre tantas.

Há algum tempo, a Análise do Discurso do não verbal vem sendo alvo de minha reflexão, o que me tem levado a estudar a imagem na mídia, no cinema e na publicidade (Souza, 1995 e 1997). Essa reflexão me levou a formular um conceito específico para o trabalho com as imagens. Trata-se do conceito de policromia (usado por associação à cromolitografia, arte de estampar imagens em relevo), correlato ao conceito de polifonia (idem).

Enquanto o conceito de polifonia recobre noção de voz – voz explícita e voz implícita -, o conceito de policromia, além de recobrir a noção de imagem explícita (o visível) e de imagem implícita (sugerida), recobre, também, a relação silêncio/imagem.

A relação silêncio/imagem vai se estabelecer em dois planos: o silêncio estando para a estrutura visual do filme, no sentido de não revelado e não sugerido (diferente da imagem implícita); essa dimensão deixa em aberto – em termos de matéria visual – o fechamento (a solução) do filme, o que favorece pensar no outro plano: o da imagem estando para o espectador – aquele que projeta a imagem que foi silenciada, segundo o seu olhar.

Ou seja, o nosso dispositivo de análise do filme enquanto discurso perpassa por esse conceito de policromia, procurando pontuar caminhos possíveis e variados para se ler o filme.

Um outro conceito eficaz, na análise dos discursos, é o conceito de recorte – oposto ao de segmento. A diferença entre esses dois conceitos reside no fato de que a noção de segmento está, a priori, na estrutura do filme, ao passo que a noção de recorte é instituída pelo intérprete, pelo espectador. Este último favorece nitidamente a relação silêncio/imagem instituída pelo espectador e não pela estrutura do filme.

Este trabalho pretende ser um ponto de partida no estudo da imagem em movimento enquanto discurso visual.

 

O filme

Limite pode ser recortado em quatro momentos. A vida da mulher n.º 1, a do homem e a da mulher n.º 2. Vidas recuperadas por três náufragos que, refugiados num pequeno barco, agarram-se a essa lembrança de vidas passadas.

Três formas de se agarrarem à vida, limitada pelo barco e pelo mar. O relembramento de cada uma dessas vidas por cada um dos náufragos, aliado à reunião dos três no barco, constitui o quarto momento e, ao mesmo tempo, une os dois desenvolvimentos do filme: o do próprio destino dos náufragos e a história de suas vidas.

Esses quatro recortes resumem o filme e, ao mesmo tempo, nos remetem às duas grandes metáforas: o barco como metáfora da vida e o mar como metáfora da morte. É também a grande antítese do filme.

A morte preenche o quarto momento. Está presente, mas não é revelada através de imagens. É marcada pela ausência, pela não imagem. É, no entanto, com exceção da última cena do filme, um elemento implícito, constitutivo no conjunto da narrativa.

A ausência atinge primeiro o homem que, incentivado pela mulher n.º 1, se joga ao mar em busca de um barril de água. A última imagem do homem é quando ele se atira ao mar. A partir daí, sua morte é marcada pela imensidão do mar e pela sua ausência no barco.

Outra antítese: o barril – no mar – metaforiza a morte do homem, porém, o alcance do barril poderia significar a possibilidade de mais algum tempo de vida. No barril, havia água, elemento vital ao homem. Assim, o barril tanto é a metáfora da morte, quanto poderia ser a metáfora da vida.

A segunda ausência atinge a mulher n.º 2. Após a tempestade, desaparecem o barco e a mulher; fica apenas a mulher n.º 1, agarrada a um pedaço de madeira, provavelmente, sobra do barco destroçado.

Diferente dessas duas mortes – ditas pela não imagem, o desfecho da vida da mulher n.º 1 fica em aberto. Não há mais o barco, lugar possível para se assinalar a ausência. Sobre um resto de madeira, um resto do barco, resta a imagem – e não a ausência – da mulher agarrada ao mesmo. A concepção em imagens do filme, em sua textura visual, não nos oferece nenhum dado visível que leve à afirmativa de que a última personagem tenha morrido em alto mar. A cena final apresenta a mulher boiando agarrada a um pedaço de madeira; a luz do sol incide em seu rosto e, a partir da fusão dessa claridade com a do sol refletindo em um ponto vazio no mar, o filme termina.

Não se pode dizer que se tem aí a imagem implícita, ou sugerida, da morte da mulher. O implícito seria mostrar, talvez, o pedaço de madeira boiando sozinho, ou qualquer outro vestígio. O pedaço do barco, uma vez que não aparece mais no filme, pode ser lido como a tábua da salvação, por extensão metonímica, como metáfora da resistência, da luta – e não de entrega – pela vida. A última imagem mostra a mulher que não se separa do que sobrou do barco. A mulher luta até onde pode e a imagem de sua morte é silenciada em termos de imagem e em termos de ausência. Fica para o espectador a decisão de escolher pela morte ou pela possibilidade de vida da última personagem. Retomando as palavras do próprio Mário Peixoto sobre o primeiro instante em que vislumbrou o final do filme – um mar de fogo, uma tábua, uma mulher agarrada -, não se encontra em seu roteiro a morte enquanto desfecho do filme.

A imagem final dos olhos da mulher retoma a imagem inicial dos mesmos olhos, imprimindo um caráter circular ao filme, condizente com a sua falta de linearidade narrativa e, portanto, com a falta de um fecho discursivo: o destino da mulher fica em aberto.

Recorrendo ao conceito de policromia – rede de imagens que se projetam e se inter-relacionam dando curso à materialidade visual do filme -, o espectador não vê (mesmo na forma de ausência) a morte da mulher n.º 1, como as análises decretam. Cabe ao olhar do espectador (e não a uma análise unilateral) projetar a morte ou a salvação da mulher. Ou, ainda, ficar com a indagação. Enquanto operador discursivo, a imagem da mulher que se agarra a um pedaço de madeira faz recuperar em retrospectiva toda a garra, a luta, a resistência dessa mulher, que não desiste da vida tão facilmente. Em perspectiva, essa imagem deixa em aberto o seu fim.

Pode-se também recuperar, aqui, o conceito de heterogeneidade discursiva (Authier, 1980), que revela que todo texto é marcado por espaços reservados ao interlocutor, cabendo a ele compor o tecido do texto como um todo, ocupando os espaços que lhe são determinados. O final de Limite termina por uma imagem silenciada: cada espectador (interlocutor) projeta o seu final.

O movimento de fusão do filme, no entanto, parece ser o elemento principal de determinação dessa heterogeneidade: toda vez que duas imagens se fundem, cria-se um outro texto e abre-se ao espectador uma possibilidade de interpretação, nem sempre clara, porém possível. A fusão, por exemplo, da roda do trem com a máquina de costura, além de poder significar elos de cadeia, prisão, pode significar a roda do destino, da vida; pode significar fuga, outra vida.

 

Imagem e Fragmento

O filme apresenta no seu desenrolar uma série de imagens fragmentadas: fragmentos do barco, parte do corpo do homem, o olho, o cabelo, etc. Fragmentos que imprimem ao filme uma estrutura de mosaico, quebrando-lhe a continuidade, a linearidade visual do mesmo. Esse recurso, muitas vezes, atrapalha a compreensão (linear?) do filme. A imagem fragmentada recorta o filme em tempo e espaço diferentes; recorta, também, o fio narrativo, quando são apresentados momentos distanciados da vida de cada um. Esses momentos são flashes de memória. Uma memória fragmentada pela situação, que insinua todo o tempo o que resta àquelas vidas. Vidas fragmentadas.

Limite é em si mesmo uma história fragmentada: começa com o após-naufrágio e o que dele restou: um barco e três sobreviventes. Silencia o fato – o naufrágio; teria sido um naufrágio? Deixa implícito a busca pela vida: como os três conseguiram chegar ao barco? O que moveu aquelas pessoas a buscarem o barco? A vontade pela morte, pela desistência, ou pela vida?

A fragmentação recorta momentos e, ao mesmo tempo, apaga o fio do tempo real. Não há momento, não há tempo pela frente. Só o passado. Enquanto recurso discursivo, os fragmentos possibilitam ao espectador a inserção de recortes particulares, de indagações e, ao mesmo tempo, apontam a falta de perspectiva, de vida. Apontam a incompletude do filme em sua materialidade e, por isso mesmo, instauram o vazio, o nada daqueles personagens. São imagens sinestésicas que contaminam o espectador com a dor daquelas vidas. Interessante é observar mais uma vez aqui a dimensão da heterogeneidade discursiva do filme dita no trabalho de ruptura da imagem.

Enfim, todos os elementos de constituição do filme reiteram a sua feição enquanto antítese, no caso, dita nas duas dimensões do tempo: o real (o não tempo) e o psicológico (a memória). O tempo reitera o grande conflito: vida X morte.

 

Conclusão

Morte e vida se reiteram por todo o filme, e a imagem dos elementos mortos do filme – como o peixe no cesto, por exemplo, e tantos outros – aponta, sempre, na forma do silêncio, do implícito, do fragmento, a relação de constituição com elementos de vida. A morte do peixe, a água no barril, o corte no dedo, etc significam a busca pela vida. Morte e vida se constituem mutuamente.

Ver Limite, em temos de texto a partir do conceito de policromia, permite visualizá-lo como uma rede de formulações, construída pelos implícitos, pelas imagens silenciadas e/ou fragmentadas, dando lugar à tessitura do filme, enquanto imagem e não enquanto narrativa verbalizada. Enquanto forma de linguagem.

Trabalhar o filme no âmbito da linguagem – no caso, a não verbal – é procurar um sentido mais amplo, além do conceito de narrativa. É buscar, de um lugar particular, interpretar, dar sentido. As imagens dispensam a palavra enquanto forma de linguagem. As imagens significam (para o espectador), elas não falam. São linguagem, são textos para serem vistos, interpretados. São, em sua materialidade visual, discursos.

 

Bibliografia

AUTHIER, J. 1980 Heterogeneidades enunciativas (xerox)

DUCROT, O. O Dizer e o Dito. São Paulo, Pontes, 1987

ORLANDI, E. “Efeitos do verbal sobre o não-verbal”, Encontro Internacional da interação entre linguagem verbal e não-verbal, Brasília, março 1993

PÊCHEUX, M. Semântica e Discurso. Campinas, UNICAMP Editora, 1988

SOUZA, T.C.C. de. Imagem e Sentido, texto-apostila utilizado no curso ANÁLISE DO DISCURSO do Instituto de Arte e Comunicação Social, Niterói, primeiro semestre de 1995

SOUZA, T.C.C. de. Discurso e Imagem: perspectivas de análise do não verbal. Conferência no II Colóquio de Analistas del Discurso, Buenos Aires, 1997

Skip to content