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Ensaio

Mário Peixoto e Carmen Santos:
A Relação do Extraordinário realizador com a Fulgurosa Estrela

Por Lívia Cabrera

A personagem é a prostituta do cais. Vemos o homem melancólico indo em direção a ponta do cais. Uma pequena embarcação está amarrada e balança com as ondas. Anda devagar, leva a mão até a cabeça, num sinal de desalento. O mar de Mangaratiba e suas montanhas estão ao fundo. A música de fundo muda, de uma melodia mais lenta e triste, para uma mais vibrante, alegre. Num plano próximo, o homem está pensativo, o olhar voltado para o chão. A câmera se vira para o lado e mostra pés femininos que se aproximam do homem. O movimento retorna para o rosto do homem e uma mão feminina toca seu ombro, num gesto de chamar a atenção. O homem se vira e a câmera acompanha o movimento, enquadrando uma mulher de cabelos curtos e desalinhados. Ela come uma carambola, mastiga com a boca aberta, olha o homem com naturalidade, cospe uma semente no chão. Ele a olha um pouco incrédulo, gesticula, conversa, muda sua expressão, ri, mas o sorriso se desfaz. No canto esquerdo do quadro, de costas, a mulher continua comendo a fruta. Corte e a cena enquadra a mulher em primeiro plano, comendo a carambola de forma prazerosa, olhando em direção ao homem como quem quer seduzir. Novo corte e um plano conjunto mostra a mulher de costas, que veste blusa branca e saia xadrez, uma roupa simples. Em sua frente está o homem. Ao redor o cais, o mar, as montanhas e uma pequena embarcação. O homem segura a mulher pelos dois braços, a coloca delicadamente para o lado, e sai andando em direção a câmera. A mulher se vira em direção ao homem e fica parada acompanhando a partida. A câmera enquadra por trás os pés dessa mulher que vê o homem partir. Um dos pés está tombado, num gesto mais casual e, ao fundo, os pés masculinos saem do quadro. O miolo da carambola cai entre os pés da mulher, no chão de madeira do cais. Fim da cena.
Imagem 1 – Fotogramas da sequência com participação de Carmen Santos em Limite.

Provavelmente essa foi a terceira vez que o público pode ver Carmen Santos na tela do cinema, ainda que Limite (Mário Peixoto, 1931) não tenha tido uma exibição comercial. A estrela do cinema brasileiro, conhecida do público muito mais pelas fotografias e matérias jornalísticas, foi vista muito pouco na tela grande no início de sua carreira. Antes, Carmen havia estreado como atriz em Urutau (William Jansen, 1919), assistido apenas por um público de convidados e imprensa, e Sangue Mineiro (Humberto Mauro, 1929), esse sim um lançamento comercial. A atriz, uma inegável apaixonada pelo cinema, teve antes de Limite a chance de produzir e atuar em outras obras na sua própria empresa, a Film Artísticos do Brasil, mas nenhum dos filmes chegou a ser visto antes do incêndio que consumiu o material.

Suas tentativas frustradas de fazer cinema, ainda muito jovem, foram acompanhadas por jornalistas especializados em cinema, como Adhemar Gonzaga, que na mesma época participava da criação da revista Cinearte, em 1926. Gonzaga e seus companheiros Pedro Lima, Álvaro Rocha e Paulo Vanderley, acompanhavam as produções cinematográficas que eram realizadas em diferentes regiões do Brasil. Foi através de Adhemar, por exemplo, que Carmen se aproximou da Phebo Sul America Film, de Cataguazes, onde Humberto Mauro e Pedro Comello realizavam filmes. A atriz se associou a uma produção da Phebo, tendo sido protagonista e coprodutora, ainda que essa segunda função tenha sido omitida para evitar conflitos com seu companheiro e financiador, Antonio Seabra (GOMES, 1974).

É também através do grupo de Cinearte que Mário Peixoto vai conseguir levantar seu projeto cinematográfico. Incentivado por eles, Peixoto assumiu a direção, que contou com empréstimo de equipamento da Phebo, os contatos de Adhemar e o laboratório instalado na casa de Carmen Santos (PESSOA, 2002). Conforme depoimento de Mário Peixoto a Ana Pessoa, em 1987, o fotógrafo Edgar Brazil, já próximo de Carmen Santos, trabalhava na película na casa dela, que já tinha alguns equipamentos por conta de suas iniciativas de produção. Ela se interessou em conhecer o jovem diretor e seu trabalho. Por intermédio de Edgar, Mário foi até a casa de Carmen para conhecê-la, pois esta havia mandado um recado propondo uma troca: se ele escrevesse um roteiro para ela, ela não cobraria o serviço de laboratório. Segundo Mário Peixoto, ao conhecê-la, resolveu testar sua vaidade dizendo que escreveria um roteiro com a condição dela fazer uma pequena participação em Limite, mas ele não iria creditá-la (PESSOA, 2002). Ela aceitou o papel da prostituta do cais.

A cena de aproximadamente três minutos não foi alardeada pela imprensa como costumava ser os projetos de Carmen e, de fato, seu nome não consta nos créditos. Há anos ela procurava viabilizar um projeto que lhe permitisse interpretar uma mulher forte, determinada e expressava esse desejo constantemente em suas entrevistas: “pelo meu temperamento cigano e romântico, pelo que tenho sofrido, pela minha maneira de compreender a vida, só os papéis fortes para as grandes emoções é que me satisfazem” [1]. Até então, as personagens que Carmen interpretara com essas características foram justamente dos projetos que não foram concluídos.

Segundo Ana Pessoa (2002), Carmen ficou entusiasmada com Mário Peixoto, sua meticulosidade na direção e o jeito novo de fazer cinema no Brasil daquele período. Ele poderia lhe escrever uma personagem mais adequada aos seus anseios de intérprete e a parceria traria de volta a possibilidade dela controlar e interferir no projeto como produtora, ainda que essa função técnica não fosse reconhecida, principalmente quando se tratava de Carmen (CABRERA, 2020). Frequentemente, quando Carmen estava a frente das iniciativas, ela era tratada mais como uma espécie de financiadora ou “animadora” do cinema brasileiro, principalmente pela imprensa, e não era incomum os conflitos internos durante as produções, certamente por Carmen se sentir desrespeitada. Os jornalistas do período e posteriormente a historiografia não entendiam a realizadora como uma trabalhadora do cinema. A imagem estelar, na qual ela se apoiava fortemente e que a possibilitou alcançar espaço no meio, pesava mais. Mas em suas produções ela procurava oferecer as melhores condições técnicas, pesquisando e adquirindo equipamentos, contratando e estabelecendo parcerias com profissionais de diversas áreas, acompanhando pessoalmente todas as etapas de seus filmes (CABRERA, 2020), conforme será noticiado no projeto Onde a terra acaba.

A famosa sessão de Limite no Chaplin Club é de maio de 1931, mas já em janeiro desse mesmo ano, Cinearte vai trazer a notícia da parceria da estrela que iria protagonizar o novo filme do promissor diretor [2]. A nova parceria entre Carmen Santos e Mário Peixoto é aclamada pela imprensa. Ela acreditava no trabalho dele e ele se apoiava no seu capital e na sua carreira de atriz e produtora. Juntos confiavam que iriam fazer uma obra prima. Detalhes sobre o filme começam a aparecer na imprensa a partir de junho, quando a preparação estava avançada. Onde a terra acaba é amplamente acompanhada por diversos veículos da imprensa carioca que publicam cartas, relatos, fotografias, chegando mesmo a organizar visitas da imprensa no inóspito set de filmagem, a ilha da Marambaia. Chamam atenção para a ousadia da empreitada que enfrentou muitas dificuldades com o clima e a falta de condições da região, mas conseguiu montar uma estrutura inédita na ilha, construindo casas para hospedagem e gravação, contando até com algumas engenhosidades para melhorar a iluminação no interior das locações e o abastecimento de água, além de um de laboratório fotográfico. Mesmo diante da dificuldade, Carmen, a única mulher da produção, esteve presente em toda preparação.

Imagina-se uma ilha em abandono, sob a tortura constante de um temporal que não se acaba mais manifestando-se ora sob a forma de uma ventania terrível que tudo arruína e destrói e ora sob a forma de chuva e todo este flagelo na moldura de um mar encapelado e sinistro que devora vidas.

Pois é essa, precisamente, a situação dramática da Ilha de Marambaia, onde há quase um mês estão vivendo os mais denodados batalhadores do cinema brasileiro tendo à frente a energia decidida de Carmen Santos e a férrea vontade de Mário Peixoto e mais a obstinação e a persistência heroicas de Raul Schnoor, D. G. Pereira e Edgar Brazil, secundados por mais vinte operários que trabalham ativamente por seus misteres. [3]

Imagem 2 – Carmen Santos, Raul Schnoor e Mário Peixoto em casa construída na Ilha da Marambaia. Acervo MAM/RJ.

Carmen Santos, ao ser entrevistada por O Jornal [4], detalhou um pouco mais a parceria para realização do filme, afirmando que o empreendimento não fixou a distinção entre artistas e financiadores, mas que todos seriam as duas coisas e entraram na produção cada um mediante suas possibilidades. Ainda assim, ela defendia que existia uma organização comercial estável e capaz de seguir desenvolvendo o cinema brasileiro: a Artistas Associados do Brasil, composta por Carmen, Mário, Raul Schnoor, Brutus Pedreira e Edgar Brazil a partir do desenvolvimento de Onde a terra acaba. Ela também detalhou melhor como seria a trama:

Na Marambaia existe um homem desiludido. Para lá vai uma escritora, que é uma criatura cheia de civilização e de cultura, um tipo extremo de uma época de extremo refinamento mental. Vai em busca de impressões para um romance. (…) Eu, Raul Schnoor e D. G. Pedreira seremos os principais intérpretes. [5]
Ana Pessoa (2002) dá mais detalhes da trama e da relação entre o diretor e a intérprete. A personagem escritora representaria a civilização e o homem a natureza. Ela se refugia na ilha sendo acolhida pelo homem. O relacionamento se dá sem perguntas ou compromissos e os personagens se tratam por codinomes: Gúpi e Eva. Desbravando a ilha juntos, ela encontra o antagonista Marcos, que conhece seu passado e passa a ameaçá-la. Ela descobre as atividades ilegais do personagem e um confronto violento se estabelece entre eles enquanto sua relação com Gúpi se torna mais forte. Mário Peixoto, ao recordar do projeto, lembra dos esforços e da disciplina de Carmen para interpretar seu papel, chegando até a ir dormir com febre por ser esbofeteada em uma cena (PESSOA, 2002).
Imagem 3 – Fotografia de cena de Onde a terra acaba. Raul Schnoor e Carmen Santos. Acervo MAM/RJ.
Após meses de trabalho, o clima na produção começa a mudar e as notícias na imprensa cessam. Os relatos são de um Mário intransigente e perfeccionista e uma Carmen acometida por crises de depressão e corriqueiras viagens ao Rio de Janeiro. Depois de algumas tentativas de retomada o filme é abandonado. Carmen chega a abrir um processo contra Mário Peixoto [6] pelo abandono da produção e para que ela pudesse continuar usando o título Onde a terra acaba, onde já havia investido muito dinheiro em publicidade. Meses depois, ela irá retomar a produção em parceria com a Cinédia, com um outro roteiro.

Anos mais tarde, Pedro Lima promoveu um reencontro entre Peixoto e Carmen. O próprio Mário abordou o assunto em um texto publicado em 1937 [7], onde fez um mea culpa em relação ao projeto, confirmando ter sido muito intransigente e, às vezes, inacessível. Mas também alega que Carmen era “indomável”. Ele relata os encontros onde conversaram sobre a possibilidade de retomar Onde a terra acaba e onde Carmen confessou a admiração por ele e sua frustração com o rompimento do projeto. Nesse reencontro também conversaram sobre o filme Inconfidência Mineira em que Carmen estava trabalhando. Pesquisas realizadas mostraram ainda alguns vestígios de projetos que ambos pretendiam fazer juntos. Mário fez um argumento denominado Tiradentes para o projeto de Carmen [8] e, anos depois, ela ainda pagou a ele os serviços de roteirização da obra ABC de Castro Alves, de Jorge Amado [9], mas nenhum saiu do papel.

A imprensa aguardou o projeto oriundo da parceria de Mário e Carmen com entusiasmo e acreditava no potencial que ele tinha para ser o maior filme brasileiro de todos os tempos. Anos depois, Pedro Lima ainda o defendia pois, mesmo inacabado, ele teria sido um representante do progresso no cinema nacional [10]. A frustração com a obra pesou bastante na carreira dos dois realizadores, mas não mais que o encontro desses dois artistas, que certamente os modificou. O extraordinário realizador nunca mais dirigiu um filme e a fulgurosa estrela seguiu tentando levantar diversos projetos, idealizando realizações que iriam alavancar a indústria cinematográfica brasileira, mas ela não conseguiu essa consagração em vida. O tempo e a revisão de conceitos e da própria história permitem que comecemos a enxergar melhor a importância dessa parceria para a história do cinema brasileiro, procurando investigar a partir de uma outra abordagem esses fracassos, abrindo um rico caminho para análises futuras.

CABRERA, Lívia Maria Gonçalves. “O maior drama nacionalista do Brasil”: produção, recepção e circulação de Inconfidência Mineira (Carmen Santos, 1936-1948). Dissertação (Mestrado em Cinema e Audiovisual) – Universidade Federal Fluminense, Instituto de Arte e Comunicação Social, Niterói, 2020.

GOMES, Paulo E. Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Editora Perspectiva, 1974.

ONDE a terra acaba. Direção: Sérgio Machado. Produção: Vídeo Filmes, Brasil, 2002 (85min).

PESSOA, Ana. Carmen Santos: o cinema dos anos 20. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2002.

[ 1 ] NAIDE, Z. Ouvindo a estrela de Cidade Mulher. O Jornal, 29 jun. 1936.

[ 2 ] Cinema no Brasil. Cinearte, nº 256, 21 jan. 1931.

[ 3 ] Onde a terra acaba. Correio da manhã, 07 jul. 1931, p. 8.

[ 4 ] Um grande empreendimento do cinema brasileiro. O Jornal, 24 jun. 1931, p 13.

[ 5 ] Ibidem.

[ 6 ] É possível verificar o documento do cartório em que Carmen processa Mário no Arquivo Mário Peixoto.

[ 7 ] PEIXOTO, Mário. Cinema caluniado. O Jornal, 06 mai. 1937, p. 3; 5.

[ 8 ] Essa informação foi encontrada no Arquivo Mário Peixoto tendo sido narrada pelo próprio Mário a Saulo Pereira de Mello.

[ 9 ] O recibo encontra-se no MIS-RJ e há uma cópia no Arquivo Mário Peixoto.

[ 10 ] LIMA, Pedro. Crônicas de Pedro Lima. O Cruzeiro, 04 abr. 1936, p. 33.

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